Cory Doctorow é jornalista, escritor e ativista. Em fevereiro de
2022 ele publicou o artigo “Repair Wars: Cory Doctorow on the State of Right to
Repair” (Guerras de Reparo: Cory Doctorow sobre o Estado do Direito de Reparar)
no site makezine.com, sobre o qual incluímos abaixo uma tradução livre.
O artigo nos ajuda a compreender como funciona a mentalidade de
grandes empresas globais. Portanto, daqui para frente, aspas para Cory Doctorow.
“Em janeiro de 2019, o CEO da Apple, Tim Cook, publicou sua carta
anual aos acionistas e, com ela, um aviso terrível aos investidores da Apple: o
mercado do iPhone estava esfriando, porque os clientes da Apple estavam
segurando seus telefones por mais tempo, fugindo dos custos da atualização
anual, consertando as telas quebradas por eventuais quedas ao invés de usar
isso como motivo para uma atualização.
Isso é o que significa “dizer em voz alta o que se costuma manter
em silêncio”. A carta de Cook foi o ponto alto de 2018, um ano em que a
empresa derrotou 20 ações na justiça em estados norte americanos de “direito de
reparo” – processos que teriam forçado a Apple e outras empresas, de John Deere
a Wahl (famosa por suas máquinas de cortar cabelo) a facilitar os reparos por
centros de serviços independentes. Essas foram lutas amargas, nas quais
ativistas de reparos – ambientalistas, fabricantes, defensores dos direitos
digitais e representantes de lojas de consertos – imploraram aos legisladores
que fizessem a coisa certa, enquanto seus adversários corporativos alertavam
que o reparo independente daria início a uma era de dispositivos que “vazam
seus dados ou explodem na sua cara”. Esses argumentos contrários ao reparo
independente tinham poucas evidências, mas os legisladores os aceitaram mesmo
assim. Essa foi uma boa notícia para a Apple e qualquer outra empresa que
quisesse aumentar seus lucros. Atacar o reparo independente permitiu que
os fabricantes obtivessem enormes lucros com seus serviços de reparo,
congelassem os rivais que fabricavam peças de reposição e, o melhor de tudo, ter
o poder de decisão sobre quando um dispositivo estava no estado de “além do
reparo”, para que os clientes fossem forçados a “atualizar” para um novo.
Por que precisamos consertar as leis em primeiro lugar? Por
que as oficinas de conserto e os fabricantes de peças terceirizados não
colaboraram para consertar nossos telefones, laptops, barbeadores, Xboxes,
carros e tratores, com ou sem a ajuda dos fabricantes originais?
Bem, eles podem... mais ou menos. Durante anos, a iFixit - um
grande herói da revolução de reparos - produziu manuais de reparo
independentes, não oficiais, não autorizados, gratuitos e de acesso aberto para
todos os tipos de dispositivos. A iFixit faz esses manuais sem a ajuda dos
fabricantes, desmontando aparelhos e descobrindo como funcionam e os meios necessários
para consertá-los. Da mesma forma, empresas terceiras fabricam peças de
reposição para os produtos que usamos. Às vezes, essas são peças padrão
que qualquer um pode fabricar lendo as especificações, e outras vezes também
fazem parte da guerra de guerrilha entre fabricantes e reparadores, criada por
meio de engenharia reversa astuta.
Tornando Difícil o Reparo
Com guias de reparo independentes e manuais de terceiros, o setor
de reparo independente deve ter tudo que precisa para fazer seu trabalho ou
mostrar como um produto pode ser consertado sem a intervenção dos fabricantes. Os
fabricantes fizeram grandes esforços técnicos para evitar isso – camuflando o
funcionamento de seus produtos, digamos, ou projetando-os para exigir
ferramentas especiais apenas para abri-los – mas neste campo de batalha, os
desafiantes (reparo independente) sempre tiveram uma vantagem sobre os
defensores (fabricantes).
Uma empresa que torna seus dispositivos completamente irreparáveis por terceiros quase certamente tornará esses dispositivos impossíveis de
serem consertados por seus próprios técnicos de reparo (e provavelmente
impossíveis de serem usados por seus próprios clientes). Assim, a guerra contra o reparo independente passou em grande parte da
frente técnica para a seara legal. Os fabricantes usam um conjunto de
teorias jurídicas – muitas vezes distorcidas além do reconhecimento ou sentido
– para manter seu monopólio sobre o reparo. Vejamos, por exemplo, a lei de
direitos autorais.
Em 1998, Bill Clinton assinou a lei Digital Millennium Copyright
Act (DMCA), e a Seção 1201 do DMCA torna crime fornecer ferramentas ou
informações que ajudem a contornar um “controle de acesso” para um trabalho
protegido por direitos autorais. Originalmente, isso foi usado para tornar
crime o ato de dizer a alguém como desregionalizar um DVD player (para que este
pudesse reproduzir discos do exterior) ou fazer o jailbreak de seu Sega Dreamcast (para que este pudesse executar
jogos homebrew). Os fabricantes de consoles de jogos e DVDs argumentaram
que os sistemas operacionais embutidos que aplicavam essas restrições eram
“trabalhos protegidos por direitos autorais” mencionados no DMCA, e que as
travas digitais que impediam alguém de alterar esses sistemas operacionais eram
“controles de acesso”. Como a alteração do sistema operacional envolvia
ignorar um controle de acesso, qualquer coisa que alguém fizesse ao sistema
operacional sem a aprovação do fabricante violava a DMCA 1201, e fornecer a
alguém ferramentas ou instruções para fazê-lo tornou-se um crime punível com
pena de prisão de 5 anos e multa de US$ 500.000 por uma primeira ofensa. Ainda
hoje, esta relíquia do século passado é uma tática usada para bloquear o reparo
independente.
A empresa John Deere é uma verdadeira pioneira aqui: eles
incorporam microchips baratos em suas peças de reposição. Depois que a
peça é instalada, ela deve ser “inicializada” com um código de desbloqueio antes
que o restante do mecanismo a aceite. Isso permite que a empresa insista
que os agricultores que consertam seus próprios tratores paguem um técnico para
tornar solene o reparo digitando uma senha no console do trator, cobrando até
US$ 200 por uma "chamada de serviço" inútil - e como bônus adicional,
esse handshake criptográfico permite
que os tratores da John Deere detectem e recusem peças de terceiros ou peças recondicionadas,
da mesma forma que uma impressora a jato de tinta que se recusa a imprimir com
cartuchos de tinta recarregados.
Esse processo está ainda mais associado à indústria automotiva,
onde é chamado de “VIN-locking” – ou seja, travamento de peças através do VIN
(Vehicle Identification Number) ou número de identificação do veículo. Mas,
embora o bloqueio VIN possa ter começado em carros e tratores, ele se espalhou
em todos os gadgets com um microchip, ou seja, em todos os gadgets.
Isso veio à tona durante a pandemia, graças ao uso do VIN-locking
da Medtronic para evitar reparos em seu ventilador PB840. A Medtronic é a
maior empresa de tecnologia médica do mundo que obteve grandes economias quando
foi comprada por uma empresa irlandesa na maior “fusão reversa” da história. Com
a bandeira irlandesa a Medtronic praticamente eliminou seus custos com impostos,
ficando com mais dinheiro para neutralizar os concorrentes.
[O ventilador PB840 gerencia o trabalho respiratório do paciente e
promove a respiração mais natural. A Medtronic possui ventiladores pulmonares
que colaboram com a recuperação do paciente por meio de tecnologias inovadoras
que promovem uma respiração mais natural].
Os técnicos que trabalham em hospitais estão acostumados há muito
tempo a fazer seus próprios reparos. Quando alguém tem um paciente no
pronto-socorro, não pode esperar três dias para que o técnico de reparo do
fabricante apareça e troque uma peça ou conserte uma solda ruim. A
Medtronic criou a narrativa de que suas táticas de bloqueio de VIN eram uma
preocupação com a segurança do paciente, quando na verdade tratava-se de uma
forma de extrair dinheiro dos hospitais. Se a Medtronic realmente se
preocupasse com a segurança dos pacientes, priorizariam o suporte técnico para os
técnicos que trabalham localmente nos hospitais, em vez de criar um mundo cheio
de ventiladores quebrados em armários empoeirados, aguardando a visita de um
técnico oficial do fabricante.
Resposta Secreta
Tudo isso piorou muito durante a pandemia, claro. Da noite
para o dia, a necessidade de ventiladores disparou – assim como estar sob lockdown (restrição imposta devido à
pandemia da Covid-19) significava que os técnicos da Medtronic não podiam simplesmente
pegar um avião e ir aos hospitais onde os ventiladores estavam quebrando. Para
a sorte dos doentes e moribundos do mundo, um técnico polonês foi
desonesto. Esse técnico anônimo era um ex-reparador da Medtronic que tinha
guardado o software usado para inicializar as travas de VIN (VIN-locking) após
novos reparos. Ele fez engenharia reversa de sua rotina de assinatura
criptográfica e inventou um dispositivo baseado em microcontrolador que poderia
inicializar um reparo em campo. Ele improvisou e fez pequenos dispositivos
eletrônicos e os enviou para hospitais de todo o mundo. Os técnicos desses
hospitais foram capazes de canibalizar peças (tirar peças de um dispositivo e
usar em outro) tornando funcionais vários ventiladores quebrados.
O bloqueio de VIN é um incômodo globalmente atraente. A
desonesta tecnologia polonesa da Medtronic permaneceu anônima porque a Polônia
faz parte da União Europeia (UE), e a UE imprudentemente permitiu que o
Representante Comercial dos EUA a pressionasse a adotar sua própria versão do
DMCA 1201 no artigo 6 da Diretiva de Direitos Autorais da UE de 2001. O
Canadá obteve sua versão em 2012, o México obteve uma em 2020 e, da mesma
forma, o resto do mundo – Austrália, Rússia, América Central, nações andinas –
adotaram suas próprias versões.
A existência de uma malha global de leis que dizem que os
proprietários de dispositivos não podem alterá-los ou repará-los sem a
aprovação do fabricante é um poderoso incentivo para o mal [materializado
através do abuso dos fabricantes]. A Apple anunciou repetidamente novos
iPhones que usam o bloqueio de VIN para evitar substituições de tela feitas por
reparadores independentes, tendo que recuar desse anuncio apenas depois de
protestos públicos.
Paradas da Cadeia de Suprimentos
A DMCA 1201 não é a única barreira legal para reparo. Os
fabricantes usam reivindicações de patentes falsas para impedir a importação de
peças de reposição de terceiros na fronteira e usam reivindicações de marcas
registradas para impedir que peças recondicionadas entrem nos EUA, dizendo que
seus próprios produtos se tornam “falsificados” no minuto em que são revendidos
como usados. Além disso, os fabricantes usam termos de serviço e acordos de
licença de usuário final para intimidar e bloquear reparos independentes,
alegando que as leis de segurança cibernética (como o Computer Fraud and Abuse
Act de 1986) e estranhas teorias de direito contratual sobre “interferência
tortuosa” transformam o reparo independente em uma questão civil e/ou criminal.
Isso é totalmente injusto, é claro, condenando o mundo a se afogar em lixo
eletrônico à medida que os dispositivos são descartados em vez de serem
consertados. Mas também é economicamente catastrófico, porque o setor de
reparo independente é um motor de crescimento econômico: de acordo com a Repair Coalition,
reciclar uma tonelada de lixo eletrônico cria 15 empregos, enquanto consertar
essa mesma montanha de coisas quebradas cria 150 empregos – com trabalhos em
pequenas empresas que atendem suas comunidades (em geral, os reparos
independentes respondem por impressionantes 4% do PIB dos EUA).
A guerra contra o reparo visa
diretamente matar esses empregos. Quando uma indústria
consegue dificultar ou impossibilitar o reparo independente por cinco ou dez
anos, garante que essas pequenas empresas serão fechadas. Que local de
conserto de telefones poderia sobreviver por meia década sem poder consertar
iPhones? Mesmo que o setor de reparo independente - e a comunidade de
fabricantes - consigam encontrar uma maneira de contornar os impedimentos
levantados pelos monopolistas da Big Tech, cada jogada anti reparo reduz o
número de técnicos que podem se estabelecer.
[Big Techs são as grandes
empresas de tecnologia que dominam o mercado. Majoritariamente localizadas no
Vale do Silício, nos EUA, elas começaram como pequenas startups, criando
serviços inovadores, disruptivos e escaláveis. Na prática, com seu
explosivo crescimento, grande poder e força de mercado, essas empresas passaram
a moldar a forma como as pessoas trabalham e se comunicam].
Não vamos perder de vista o que
está em jogo aqui: o reparo independente é importante por dar as pessoas o direito
de decidir se um produto adquirido serve ou não, quando é hora de aposentar
esse produto e passar para um novo. Este é o direito à
autodeterminação tecnológica!
Uma Pequena Vitória
Enquanto escrevo estas
palavras, a Apple fez o que pareceu ser um pedido de paz na guerra contra o
reparo. Em novembro de 2021, a empresa anunciou que começaria a vender
ferramentas e peças para que os próprios clientes pudessem fazer seus reparos. O
anúncio agitou esse ambiente de disputa, mas ao mesmo tempo, foi preocupantemente
vago: a Apple é uma empresa na vanguarda da guerra contra o reparo, e há muitas
maneiras de implementar seu programa de reparo do proprietário para torná-lo
efetivamente inútil (digamos, insistindo que os reparos domésticos exijam a
troca de conjuntos inteiros em vez de componentes individuais, o que tornaria a
substituição de uma tela quase tão cara quanto a compra de um novo telefone). Além
disso, a mera existência de um programa de reparo do proprietário poderia ser utilizada
como um pretexto para eliminar futuras ações de direito de reparo que protegem
o reparo independente e que exigem que os fabricantes produzam peças que possam
ser substituídas e manuais que expliquem como fazê-lo. É ótimo que a Apple
tenha decidido permitir que seus clientes façam seus próprios consertos, mas,
em última análise, isso não deveria ser uma decisão da Apple. Você comprou
seu iPhone, você o possui. Quem conserta é sua decisão - e o mesmo vale
para tratores, ventiladores, barbeadores e todos os outros aparelhos”.
Link
para o artigo original > https://makezine.com/2022/02/07/repair-wars/
Mais
de 53 milhões de toneladas de equipamentos eletroeletrônicos e pilhas são
descartadas em todo o mundo, segundo o The Global E-waste Monitor 2020. O
Brasil é o quinto maior gerador desse lixo no mundo. Mesmo assim, muita gente
ainda não sabe o que é esse tipo de resíduo e como ele deve ser descartado para
evitar danos ao meio ambiente e à saúde humana.
Para
mais informações acesse > https://www.spacemoney.com.br/agencia-brasil/brasil-e-o-quinto-maior-produtor-de-lixo-eletronico/172275/