"Décadas atrás, em um dos muitos encontros políticos de que participei, no almoço oferecido pelos promotores do evento coube-me sentar-me à frente de um jovem que era servidor público em um pequenino município paulista. Na verdade, era o tesoureiro da prefeitura, cargo que exercia após aprovação em concurso. Entusiasmado, passou a segredar-me os detalhes da luta interna no diretório municipal do seu partido. Eu comia e ele falava. Sabendo que eu era prefeito, passou a dissertar sobre o seu sonho de chegar à chefia do executivo e, disposto a dar provas de sua honestidade pessoal, destacou o fato de que no exercício de suas funções na tesouraria jamais cobrara qualquer comissão superior aos “dez por cento de lei”.
Quase me engasgo.
--- Mas que lei é essa, meu caro?
--- Bem, eu sempre ouvi falar que esse é o limite… Não é?
Impossível não ficar constrangido diante de uma situação dessas. O rapaz tinha plena convicção de que ao cobrar uma comissão de dez por cento sobre os pagamentos feitos aos fornecedores estava agindo estritamente dentro da lei e da moral, mesmo porque sabia de casos em que se pediam “até quinze, vinte por cento”.
Nestes tempos em que as notícias de propinas estão a explodir em todos os cantos da administração pública, umas investigadas, outras amoitadas, mas todas praticadas, lembro-me desse episódio e me convenço de que este mal já é um traço da nossa cultura, um traço insuportável, mas é. Desde o garçom que quer sua gorjeta, passando pelo flanelinha que “toma conta” do seu carro sem você pedir, mas quer o dele, até o político que morde sistematicamente além da sua remuneração legal, uma boa banda do povo brasileiro acha natural que se leve algum por fora, com ou sem razão, bastando haver oportunidade. Tanto acha natural que raros se escusam em desempenhar o papel de corruptor, ou seja, pagar um extra para conseguir o que querem, seja um objeto lícito ou ilícito.
Não fiquei sabendo se o rapaz dos dez por cento tornou-se prefeito algum dia, mas os políticos não vêm de Marte, emergem do meio social e parecem levar consigo essa tendência para dar a curva nas leis, para sonegar, enganar o radar, cometer esses pequenos delitos. Quando têm às mãos orçamentos milionários a aplicação de tais princípios acaba produzindo resultados desastrosos para o erário.
Perante esse quadro, as pessoas honestas se afastam da prática política por ela haver se tornado uma atividade altamente suspeita. Enquanto isso, os que não fazem questão desse “detalhe”, acabam sendo maioria em governos e parlamentos. Os “dez por cento de lei” e muito mais passam a ser aceitos como uma prática absolutamente “normal”.
Faz-se necessário que as famílias e as escolas comecem a realçar esse lado na formação do caráter de nossas crianças. A chamada “Lei de Gerson”, levar vantagem em tudo, há de ser combatida desde cedo. Em seu lugar, o respeito às coisas alheias deve ser ensinado em todos os momentos do cotidiano.
Respeito ao que é alheio e ao que é público. Muita gente teima em achar que os bens públicos são assim chamados porque não são de ninguém, quando na verdade recebem essa designação justamente porque pertencem a todos – todos nós, que, por tais razões, temos sobre eles direitos e responsabilidades".
Por Jesus Guimarães (http://zuguim.blog.uol.com.br/)
O autor é amigo e ex-prefeito da cidade e Tupã, no interior do estado
de São Paulo, localizada a 520 quilômetros da capital.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Inclua seu comentário: